A palavra cotidiano está nos dicionários, traz, de forma indissociável, a ideia de repetição diária, de habitualidade, de rotina. E também, pela ideia de repetição, a sensação de cansaço da mesmice e da ausência de perspectivas, sensação essa somente contornável no plano onírico.
E rotina, a gente sabe, destrói relacionamentos afetivos, inclusive, alguns mais profundos, aparentemente sólidos e indestrutíveis, pois o que é rotineiro cansa, sufoca, desestabiliza emoções e traz desmotivação para o enfrentamento da vida.
Em boa parte das vezes, o cotidiano das pessoas comuns, como nós, se faz pesado e massacrante, além de tantas outras razões, pela falta de dinheiro, que não permite, neste mundo consumista e de aparências em que vivemos, que se tenha o mínimo para sonhar com mudanças.
Estive pensando nisso ao saber, que, mais uma vez, a Mega-Sena já acumulada há vários sorteios, não teve ganhador no final de semana e frustrou os sonhos de milhões de brasileiros de fugir da rotina, ao mesmo tempo em que alavancou, é certo, outras tantas esperanças de um amanhecer na próxima quinta-feira em que os sonhadores estejam transformados em multimilionários.
Com o pensamento vagando nessas bobagens, lembrei-me de duas obras-primas do cancioneiro brasileiro, lá do início dos anos 1970, período em que, além da rotina normal da vida sem perspectivas pessoais (profissionais, afetivas), havia a rotineira e opressiva ausência de liberdades públicas e individuais e a massacrante permanência do arbítrio e do poder exercido à margem dos controles políticos e sociais.
As obras-primas? Ah, sim, Cotidiano, do Chico Buarque de Hollanda, de 1971, e Cotidiano nº 2, de Vinicius de Moraes e Toquinho, de 1972. A primeira com poesia mais densa e a segunda, mais leve, com traços bem-humorados, mas ambas sensacionais.
A canção do Poetinha e de Toquinho, hoje, menos conhecida talvez que a de Chico, começa com os seguintes versos: "Hay dias que non se lo que me pasa, eu abro meu Neruda e apago o sol... Misturo poesia com cachaça.
E acabo discutindo futebol! Depois, acordo de manhã: pão com manteiga. E muito, muito sangue no jornal. Aí a criançada toda chega. E eu chego a achar Herodes natural. Na terceira estrofe: Depois faço a loteca com a patroa. Quem sabe nosso dia vai chegar... E rio porque rico ri à toa. Também não custa nada imaginar! E na última: às vezes quero crer mas não consigo.
É tudo uma total insensatez... Aí pergunto a Deus:Escute, amigo. Se é pra desfazer porque é que fez? Entre as estrofes o refrão: Mas não tem nada, não, tenho meu violão." Bem, voltando ao mundo real e à questão da Mega-Sena acumulada, não se pode negar que 70 e poucos milhões de reais serviriam bem para quebrar a rotineira monotonia da vida cotidiana. Com patroa ou sem patroa. Por isso, as filas nas lotéricas e o sonho de rir à toa. Esqueçamos a última estrofe, quem sabe nosso dia vai chegar?